| O expresso é hoje uma das receitas mais consumidas de café. A bebida é um convite ao encontro, à conversa e ao exercício criativo |
Diário do Nordeste - Caderno 3 - 06.12.2010
ADRIANA MARTINS - REPÓRTER
Nas palavras do escritor Michael Pollan (autor de "O dilema do onívoro"), comer é um ato social - ou seja, envolve muito mais do que apenas nutrição ou sabor. Está relacionado à história, à cultura e ao hábito de compartilhar.
Uma refeição, porém, nunca está completa sem o devido acompanhamento líquido. Não por acaso, desde os primórdios de sua existência o homem empenha-se no desenvolvimento de toda sorte de bebidas, que por si só constituem verdadeiras instituições da alimentação.
Uma delas, no entanto, parece se destacar em ocasiões relacionadas à intelectualidade e à cultura de maneira geral. A título de ilustração, basta reparar na abundância de nomes como "café com livros", "café & cultura", "café com letras" - normalmente emprestados a livrarias, cafeterias, programas de TV ou projetos voltados ao debate de ideias. É inegável a vocação agregadora e simbólica da frutinha do cafeeiro.
A associação do café ao exercício do saber certamente passa por algumas de suas características. Bebidas alcoólicas, por exemplo, normalmente estão vinculadas a ocasiões festivas - em parte pelo efeito de euforia que causam no organismo. Ora, dificilmente vê-se uma reunião de negócios regada a cerveja. Mesmo o vinho (injustamente considerado mais elegante), quase nunca sustenta um convite apartado da refeição.
Já o café por si só constitui um evento. Seu aroma marcante é a própria tradução de aconchego, quase um anúncio de boas-vindas. O fato de ser quente também contribui para torná-lo uma bebida reconfortante. Por fim, é considerado estimulante, devido à presença de cafeína em sua fórmula. Junte tudo isso e fica mais fácil entender porque tantas pessoas dizem "só funcionar depois de uma xícara de café".
Mas é na história do "pretinho" que encontramos as razões fundamentais de sua associação ao universo intelectual. Segundo dados da Associação Brasileira da Indústria do Café (Abic) e do livro "História do Café", da historiadora Ana Luiza Martins, tudo começou na Etiópia, país de origem do cafeeiro, localizado no nordeste da África - onde ainda hoje a planta faz parte da vegetação natural.
Os etíopes alimentavam-se da polpa do fruto, macerada ou misturada em banha. Mas foram os povos da Península Arábica os primeiros a dominar a técnica de cultivo e preparação do café. As primeiras referências sobre ele estão registradas em manuscritos antigos do Iêmen, datados de 575 d.C. Segundo informações do documento, essa foi a primeira região a receber as sementes do cafeeiro trazidas da Etiópia.
Apenas por volta do ano 1.000 seria conhecida a infusão com as frutinhas vermelhas. O processo de torrefação, por sua vez, só foi desenvolvido no século XIV, quando a bebida adquiriu a forma e o gosto atuais e recebeu o nome de "kahwah" ou "cahue", que significa "força", em árabe.
Em grupo
Com a produção comercial do café, a bebida torna-se importante na cultura árabe, e o comércio dos grãos, profunda relevância comercial na região. Segundo Ana Luiza Martins, o hábito de beber café por prazer, em casa ou em locais coletivos, popularizou-se a partir de 1450. O produto era apropriado à cultura árabe-islâmica, tendo em vista a proibição de bebidas alcoólicas estabelecida pelos preceitos do islamismo. A princípio, um dos consumos foi entre os filósofos sufis, que então permaneciam acordados para a prática de exercícios espirituais.
Martins aponta, no entanto, que cabe à Turquia o pioneirismo do "hábito do café", onde a bebida se transformou em ritual de sociabilidade - graças ao surgimento das cafeterias. Em 1475, na luxuosa Constantinopla, surgiu a Kiva Han, considerada a primeira. Na sequência, Meca, Cairo e Damasco abriram suas próprias cafeterias. Nesse rastro, multiplicaram-se os cafés no Oriente, conhecidos como "kaveh kanes" e famosos pela suntuosidade. Assim, surgia um novo espaço da convivência, que abrigava desde artistas até comerciantes interessados em discutir negócios.
Difusão
Na Europa, os grãos de café chegaram em 1615 (apenas para o preparo da bebida, sem o pergaminho que o fazem germinar - o cultivo ainda era ferrenhamente defendido pelos árabes). A porta de entrada foi a cidade de Veneza, grande mercado e centro difusor de especiarias. Segundo Martins, a propagação do café torrado e moído aconteceu a partir da Botteghe del Caffè, um dos mais tradicionais pontos de venda da cidade. A infusão negra, considerada artigo exótico e bastante caro, não tardou a conquistar o Velho Continente. Era o "licor do Oriente", que seduzia pelo sabor, por suas propriedades estimulantes e função agregadora.
Em "História do café", Martins aponta a Inglaterra como o primeiro país na Europa a cultivar o hábito dos Cafés públicos. Em 1650, foi aberto em Oxford um dos primeiros pontos de venda. Mas foi Londres o palco da multiplicação das famosas "coffeehouses", onde se reuniam altos comerciantes, banqueiros, políticos e intelectuais. Tamanha agitação cultural rendeu às cafeterias inglesas denominações como "seminários de rebelião" e "universidade a vintém".
Posteriormente, o café na Inglaterra foi obscurecido pela força do chá. Coube à França, portanto, eternizar o modelo das cafeterias, por meio dos charmosos Cafés parisienses, que se multiplicaram ao longo do século XVII.
Em 1688, foi aberto o mais famoso deles, o Café Procope. Fundado por Procópio dei Coltelli, é considerado o mais antigo do mundo em atividade - embora hoje também funcione como restaurante. Lá conviveram nomes como Balzac, Voltaire, Benjamin Franklin, Victor Hugo, Napoleão, entre outros. Balzac chegou a registrar sua impressão extasiada da bebida em "Dos estimulantes modernos": "O café cai-nos no estômago e há imediatamente uma comoção geral. As ideias começam a mover-se como os batalhões do Grande Exército ...".
Os holandeses foram os primeiros a obter mudas de café e a levá-las para várias de suas colônias. Mas foi a partir do cultivo na Guiana, então colônia francesa, que o café chegou ao Brasil - onde se adaptou e se espalhou rapidamente. Assim, passou de uma posição relativamente secundária a produto-base da economia brasileira.
Inspiração
Foi também a França, e sua arquitetura em estilo art nouveau, que inspirou a construção dos primeiros cafés em Fortaleza, quando a capital cearense vivia a então chamada Belle Époque.
Segundo o historiador Tião Ponte, no livro "Ah, Fortaleza" (organizado por Gylma Chaves, Patricia Veloso e Peregrina Campelo), o termo francês expressa a euforia de setores sociais urbanos com as invenções e descobertas científico-tecnológicas decorrentes da Segunda Revolução Industrial (1850-1870) e demais novidades, modas e produções artístico-culturais ocorridas entre 1880 e 1918, fim da Primeira Guerra Mundial (no Brasil, o período estica-se até os anos 1920).
Ponte explica trata-se de uma época marcada por intensas transformações, que alteraram profundamente a economia, a política e os modos de viver, graças ao surgimento de máquinas e inovações como o automóvel, o cinema, o telefone, a eletricidade e o avião.
De acordo com o historiador, Inglaterra e França foram os principais centros irradiadores desses novos valores e padrões, que em seguida alcançaram as principais cidades brasileiras, remodeladas sob a referência da modernização urbana europeia. Em Fortaleza isso implicou, entre outras transformações, a absorção imediata de equipamentos inéditos, como bondes e Passeio Público, fotografia, telefone e os famosos cafés afrancesados na Praça do Ferreira.
Segundo o arquivista Nirez, em trabalho de pesquisa desenvolvido para o site Portal da História do Ceará, os destaques eram os quatro cafés instalados em cada canto da Praça do Ferreira. O mais antigo deles, Café Java (localizado na esquina nordeste, no encontro das ruas Guilherme Rocha e Floriano Peixoto), foi construído em 1886, de propriedade de Manuel Pereira dos Santos (o Mané Coco)
Assim como as primeiras cafeterias da história configuraram-se em espaços de pulsão cultural, o Java também foi ponto de encontro da intelectualidade da época. Tanto que, cinco anos após sua criação, foi palco do movimento literário mais importante do Ceará, a Padaria Espiritual, idealizado por Antonio Sales e que reuniu nomes como Adolfo Caminha, Ulisses Bezerra, Sabino Batista, Álvaro Martins Temístocles Machado e Rodolfo Teófilo, entre outros.
Ao Java seguiram-se o Café Elegante (esquina das ruas Pedro Borges e Floriano Peixoto); o Café do Comércio (esquina das ruas Major Facundo e Guilherme Rocha) e o Café e Restaurante Iracema (na esquina das ruas Pedro Borges e Major Facundo). Na reforma de 1920 da Praça do Ferreira, o então prefeito de Fortaleza Godofredo Maciel ordenou demolir os quatro quiosques.
De lá para cá, apesar das inúmeras mudanças pelas quais passou a capital cearense, e das próprias transformações históricas do mundo, o café jamais perdeu seu caráter de socialização e seu vínculo com o universo das artes e da cultura. Não por acaso, hoje, as duas principais livrarias de Fortaleza têm suas próprias cafeterias - a Livraria Cultura, com a marca Três Corações, e a Saraiva, com o Dona Xícara. A pequena livraria Nobel, por sua vez, consegue destacar-se mais pela presença do Vanilla Caffè do pelo seu acervo.
Algumas diferenças, no entanto, são sintomáticas, entre elas a de que as três livrarias funcionam dentro de shoppings. Outra característica, inimaginável nos tempos do velho Java, é o acesso WiFi à internet, facilidade oferecida, por exemplo, no Vanilla Caffè.
Outra opção de café literalmente rodeado de cultura é o Santa Clara Café Orgânico, cujas paredes envidraçadas oferecem uma bela vista do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura.
O lugar oferece 22 receitas da bebida - desde o expresso até misturas que levam chocolate e outros ingredientes - feitas com grãos cultivados sem o uso de defensivos químicos, no interior de Minas Gerais. Com salas de cinema e teatro, museu e outros equipamentos por perto, assunto é o que não vai faltar para esse café.
Nesse mapa, o Centro de Fortaleza ainda persiste, com um exemplo que também combina café e artes. Construído na segunda metade do século XIX, e originalmente chamado de sobrado da Rua da Palma (atual Major Facundo), o Sobrado Dr. José Lourenço já teve múltiplos usos - desde moradia e repartição pública e até bordel.
Tombado pela Secretaria da Cultura do Ceará (Secult), foi restaurado em 2006. Inaugurado em julho de 2007, abriu as portas ao público com nova destinação: ser um centro cultural aglutinador das artes visuais do Ceará. O espaço abriga auditório, salas para exposição e, claro, um café.


segunda-feira, dezembro 06, 2010
Redação do IN

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